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Por Jornal do Brasil/ 18/09/20.
Por ocasião dos 70 anos da TV brasileira, se faz muito atual um artigo de autoria do cardeal dominicano D. Lucas Moreira Neves nos anos 90.
Do polêmico manifesto de Emile Zola estou plagiando somente o título – e, se puder, a veemência. Fora isso, não pretendo revisitar nesta crônica o clamoroso affaire Dreyfus. O meu j’accuse é assestado contra a televisão brasileira. E o lanço como brasileiro preocupado com meu País e como bispo responsável por grande número de fiéis.
Não quero, de modo algum, generalizar. Estou pronto a excetuar da minha acusação o canal dedicado à educação e cultura e os programas que, nos diferentes canais, contribuem para o crescimento e a elevação cultural e humana da população.
Feito isso, e tomando por testemunhas a sociedade brasileira em geral, os pais de família e os educadores em particular, os pastores de Igrejas e líderes religiosos, eu acuso a televisão brasileira pelos seus muitos delitos.
Acuso-a de descumprir sistematicamente as funções em vista das quais obteve do governo uma concessão: informar, educar, cultivar, formar consciência e divertir. Em vez disso, ávida somente de pontos no Ibope e de faturamento, ela não hesita em apelar aos instintos mais baixos do homem. Seu pecado mais grave é o que concerne à educação por ser esta a necessidade e as exigências fundamentais no nosso País.
Com raras e louváveis exceções, a tevê brasileira não só educa, mas, com requinte de perversidade, deseduca. Abusando dos seus recursos técnicos, do seu poder de persuasão e de penetração nos lares do País inteiro, ela destrói o que outras instâncias pedagógicas e educativas, a duras penas, procuram construir.
Acuso a televisão brasileira de ministrar copiosamente à sua clientela os dois ingredientes que, por um curioso fenômeno, andam sempre juntos: a violência e a pornografia. A primeira é servida em filmes para todas as idades.
A segunda impera, solta, em qualquer gênero televisivo: telenovelas, entrevistas, programas ditos humorísticos, spots publicitários e clips de propaganda. Há cerca de três anos, em artigo no JB, o editor e jornalista Sérgio Lacerda denunciava que, com sua enxurrada de pornografia, a TV brasileira está formando uma geração de voyeurs.
Acuso a televisão do nosso País de estar utilizando aparelhagens e equipamentos sofisticados com o objetivo de imbecilizar faixas inteiras da população. Uma geração de debilóides. O processo se torna consternador e inquietante quando, a pretexto de humor, um instrumento de educação, como a escola, se transforma em “escolinha”, onde o mau gosto, a idiotice, o achincalhe são dados em pasto a crianças, adolescentes e jovens em formação.
Em matéria de humor televisivo, aliás, poucos o analisaram tão profundamente como Moacyr Werneck de Castro, ao apontá-lo como verdadeira regressão à infância, por meio de um ‘repertório de boçalidades’ (Humor na Televisão, JB 06/07/91).
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Acuso a TV brasileira de ser demolidora dos mais autênticos e inalienáveis valores morais, sejam eles pessoais ou sociais, familiares, éticos, religiosos e espirituais. Demolidora porque não somente zomba deles, mas os dissolve na consciência do telespectador e propõe, em seu lugar, os piores contravalores.
Neste sentido, é assustadora a empresa de demolição da família e dos mais altos valores familiares – amor, fidelidade, respeito mútuo, renúncia, dom de si – realizada quotidianamente, sobretudo pelas telenovelas. Em lugar disso, o deboche e a dissolução, o adultério, o incesto.
Acuso a TV brasileira de ser corruptora de menores, em virtude de programas da mais baixa categoria moral, pelas cenas e pelo palavreado, em horários em que crianças estão diante da caixa mágica.
Acuso-a de atentar contra o que há de mais sagrado, como seja, a vida. Não há muitos dias, em programa reprisado, milhares de espectadores viram e ouviram, no diálogo entre um talkman e uma jovem de vinte anos a mais explícita apologia do aborto e o não velado incitamento à supressão de vidas humanas no seu nascedouro.
Acuso-a de disseminar, em programas vários, idéias, crenças, práticas e ritos ligados a cultos os mais estranhos. Ela se torna, deste modo, veículo para a difusão de magia, inclusive magia negra, satanismo, rituais nocivos ao equilíbrio psíquico.
Acuso a TV brasileira de destilar em sua programação e instilar nos telespectadores, inclusive jovens e adolescentes, uma concepção totalmente aética da vida: triunfo da esperteza, do furto, do ganho fácil, do estelionato. Neste sentido, merecem uma análise à parte as telenovelas brasileiras sob o ponto de vista psicossocial, moral, religioso.
Quando foi que, pela última vez, uma novela brasileira abordou temas como os meninos de rua, os sem-teto e sem-trabalho, os marginalizados em geral? Qual foi a novela que propôs ideais nobres de serviço ao próximo e de construção de uma comunidade melhor? Em lugar disso, as telenovelas oferecem à população empobrecida, como modelo e ideal, as aventuras de uma burguesia em decomposição, mas de algum modo atraente.
Acuso, enfim, a televisão brasileira de instigar à violência: ‘A televisão brasileira terá de procurar dentro de si as causas da violência que ela desencadeou e de que foi vítima’ (Editorial Estrelas candentes, JB, 06/01/93). ’Já se chamou a atenção para o fato de que o crescimento de rede monopolística da televisão coincida com o crescimento da violência no país e jamais se chegará no âmago da questão enquanto a própria televisão se recusar a assumir sua responsabilidade’ (Editorial Limites da dor, JB, 08/01/93). Ela não pode procurar álibis quando essa violência produz frutos amargos. Quem matou, há dias, uma jovem atriz? Seria ingenuidade não indiciar e não mandar ao banco dos réus uma co-autora do assassinato: a TV brasileira. A novela das oito. E – sinto ter que dizê-lo – a própria novela De corpo e alma.
Cardeal, e ex-Primaz do Brasil Dom Lucas Moreira Neves (+ in memorian)
Artigo publicado em 13 de janeiro de 1993 no Jornal do Brasil
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